Vivendo na visão de Deus

Por Dallas Willard, em resposta à pergunta: "Por que as igrejas e os ministérios muitas vezes perdem a essência da visão que tinham quando foram fundadas, a tal ponto que a instituição resultante, anos mais tarde, é muito diferente do sonho original? O que acontece ao longo do caminho?"

De fato, não são poucas as congregações e as comunidades cristãs (católicas, protestantes e evangélicas) que hoje se afastaram radicalmente de sua visão original. Diversas lideranças têm sucumbido a artifícios contemporâneos para manterem suas igrejas cheias e em movimento, dissociando oração, devoção e dependência de Deus de tudo que estão fazendo agora mesmo "em nome de Deus".

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Podemos resumir o processo pelo qual a missão e seus objetivos tomam o lugar da visão original como ponto absoluto de referência para as pessoas envolvidas:
  1. A visão de Deus e de si mesmo em Deus inspira uma combinação de humildade e grande anseio por Deus.
  2. Essa combinação leva a esforços extraordinários realizados na dependência de Deus.
  3. Grandes resultados são alcançados, pois Deus age em conjunto com os esforços feitos na dependência dele e por amor a ele.
  4. Os resultados desenvolvem vida própria. Pessoas ao redor só conseguem ver os resultados que, de fato, são extremamente notáveis e dignos de apoio. 
  5. Por vezes, o apoio humano também representa o sustento de Deus. Mas os efeitos de tudo isso precisam ser vigiados com grande cuidado a fim de evitar que corrompam o coração, afastando-o de uma visão apropriada de Deus e da coragem humilde que flui dela.
O rei Salomão começou bem. Conhecia Deus, pelo menos por intermédio de seu pai, Davi, e sabia que não podia realizar seu trabalho sozinho. Orou pedindo sabedoria e conhecimento. Deus atendeu. Salomão tornou-se extremamente poderoso (2Cr 9). Mas, para fortalecer sua posição, formou alianças por meio de casamentos com as mulheres da casa real de várias nações e suas setecentas esposas desviaram seu coração de Jeová e o levaram a adorar deuses estrangeiros (1 Rs 11:1-6). Quando morreu, o rei deixou para trás um governo terrivelmente opressivo contra o qual o povo estava pronto para se rebelar e um filho insensato para reinar. Não é absurdo pensar que Salomão foi vencido por seu programa de construção.

Mas será que precisa ser assim? É algo simplesmente inevitável? Em geral, a resposta é "não". Alguns indivíduos conseguem evitar esse processo degenerativo, muitos não. Alguns grupos e organizações conseguem adiá-lo. Os cristãos primitivos bateram o recorde de manter o fogo interior da visão dos "fundadores". Ao que parece, durante dois ou três séculos, a visão de Jesus Cristo como Senhor ardeu intensamente no coração de seus primeiros seguidores. Os sucessos extraordinários do movimento foram bastante lentos em gerar um "vaso" exterior que substituiu o tesouro de Cristo como centro de atenção e devoção em sua vida.

As primeiras gerações de cristãos foram admiravelmente bem-sucedidas na tarefa de transmitir à geração seguinte a visão sagrada que as posicionava e guardava. Mas esse fenômeno não foi de todo inédito. No Antigo Testamento, Josué (Êx 33:1l) e Eliseu (2 Rs 2:9) representam dois casos em que os discípulos buscaram ao Senhor tanto quanto seus mestres (Moisés e Elias) e, em decorrência disso, viveram de acordo com o mesmo espírito.

Mais adiante na história cristã encontramos exemplos claros dessa transmissão do fogo original de uma geração para outra nos jesuítas, nos quacres, nos irmãos morávios e nos metodistas. Sem dúvida, há muitos outros casos menos conhecidos. Portanto, trata-se de algo possível. E há diversos casos de indivíduos em cada geração que tiveram um final feliz. Quais os elementos básicos dessa continuidade?

A resposta é de conceito simples, mas de execução difícil — especialmente para o caso transgeracional. É uma questão de identificar e manter a percepção ou a visão de Deus, de si mesmo e do mundo, que permeou e motivou os fundadores. Não há como reduzir isso a uma fórmula, pois se trata de uma questão extremamente pessoal que suscita amplo espaço para variações individuais. Também depende da graça — ou seja, da atuação de Deus em nossa vida para realizar o que não somos capazes de fazer por conta própria.

Não obstante todas essas considerações, há certas coisas que qualquer pessoa pode e deve fazer para receber e preservar o fogo espiritual que mantém a missão e o ministério em seu devido lugar, evitando que se transformem na visão limitante que nos deixa obcecados e, por fim, nos sufoca.

O primeiro passo é reconhecer sinceramente a inevitabilidade prática da perda de visão. Esse reconhecimento deve ser explícito e regular. Não deve ser feito de forma paranóica, mas apenas honesta. Precisamos encontrar maneiras de manter a visão em nossa mente e na de nossos colaboradores sem nos tornarmos inconvenientes. A criatividade e o bom gosto existem para ser usados.

Em segundo lugar, precisamos identificar, entender e nos dedicar à visão fundadora. Não é uma tarefa simples. Até mesmo os próprios fundadores podem não saber exatamente o que os motivou e os formou. Muitas vezes, humildade e modéstia louváveis os impedem de investigar sua vida mais a fundo e, por certo, também não permitem que "imponham" sobre outros aquilo que encontram dentro de si. Mas apesar de essa atitude ser elogiável, ela torna extremamente difícil manter a visão neles mesmos e em outros. Assim, é preciso ser honesto, preciso e explícito sobre aquilo que a visão era — e aquilo que deve ser hoje. O enfoque deve ser sobre a visão, e não sobre os indivíduos que a possuem, apesar de ser necessário que os indivíduos tenham a visão e realizem a missão.

Em terceiro lugar, é preciso adotar medidas para viver de acordo com o cerne da visão. A sabedoria de Provérbios diz: "Confie no SENHOR de todo o seu coração e não se apoie em seu próprio entendimento; reconheça o SENHOR em todos os seus caminhos, e ele endireitará as suas veredas. Não seja sábio aos seus próprios olhos" (3:5-7). E também: "Acima de tudo, guarde o seu coração, pois dele depende toda a sua vida" (4:23).

No centro do cuidado do coração está o amor de Deus. Esse deve ser o alvo jubiloso de nossa vida. É, por isso que, ressaltando o conceito profundo de vida desenvolvido ao longo da experiência judaica, Jesus afirmou que o primeiro mandamento é "Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de todas as suas forças" (Mc 12:30). Isso é uma ordem. É algo que devemos fazer e algo que podemos fazer. Aprenderemos como fazê-lo se tivermos a intenção de fazê-lo. Deus nos ajudará e encontraremos um modo de obedecê-lo.

O amor de Deus, e somente o amor dele, guarda a visão de Deus, mantendo-a em nossa mente a todo tempo. De acordo com Thomas Watson:
... o primeiro fruto do amor é a meditação da mente sobre Deus. A pessoa apaixonada pensa sempre no objeto de sua afeição. Aquele que ama Deus é arrebatado e extasiado com a contemplação de Deus. [...] Deus é o tesouro, e onde está o tesouro, lá está o coração.
O rei Davi nos revela o segredo de sua vida: "Sempre tenho o SENHOR diante de mim. Com ele à minha direita não serei abalado" (Sl 16:8).

A visão de Deus guarda a humildade. Ver Deus como ele é de fato permite que vejamos a nós mesmos como somos realmente. Isso nos propicia ousadia, pois percebemos claramente que um grande bem e um grande mal estão em jogo e vemos que não cabe a nós realizar o bem, mas sim a Deus — aquele que é supremamente capaz. Somos livrados do fingimento, da presunção a nosso próprio respeito e da pressão, como se o resultado dependesse de nós. Persistimos sem frustração e praticamos a recusa calma e feliz em fazer qualquer tipo de mal.

Deus olha para aqueles que são humildes e contritos de espírito e que estremecem quando ele fala (Is 66:2). Ele se opõe aos orgulhosos, mas dá graça aos humildes (1Pe 5:5). Lembre-se de que a graça indica que ele está agindo na vida dessas pessoas.

Assim, os humildes dependem de Deus, e não de si mesmos. Eles se humilham "debaixo da poderosa mão de Deus" (1 Pe 5:6), dependendo de Deus para agir. Colocam os resultados inteiramente nas mãos de Deus. " [Lançam] sobre ele toda a sua ansiedade, pois ele tem cuidado [deles]" (lPe 5:7). O resultado é a certeza de que a missão e o ministério serão realizados no tempo e à maneira de Deus. Esses dois elementos não precisam ser a visão, e os objetivos que definimos para eles dizem respeito a Deus, não a nós. Fazemos nosso melhor, trabalhamos com afinco e até com sacrifício. Mas não carregamos o peso, nosso ego não se envolve de nenhuma forma na missão e no ministério. Em nosso amor por Jesus e seu Pai, entregamos verdadeiramente nossa vida a ele. Nossa vida não é objeto de preocupação profunda.

A fim de manter e desenvolver esse tipo de vida de entrega a Deus é preciso ter um plano geral de vida que incorpore práticas voltadas especificamente para o cuidado do ser interior. Essas práticas são as disciplinas para a vida espiritual. Não será possível tratar dessas disciplinas aqui, mas o próximo passo para as pessoas que decidiram amar a Deus de todo o seu coração, de toda a sua mente, alma e de todas as suas forças é implementar práticas regulares que possibilitem concretizar essa decisão. Isso levará algum tempo e exigirá estudo, experimentação e orientação do Espírito Santo. No entanto, é um plano executável e, quando implementado, torna a vida incalculavel-mente mais fácil, agradável e intensa. A missão e o ministério deixam de ser pesados, apesar de continuarem a ser desafiadores e exigirem esforço. No entanto, o jugo de Cristo é suave, seu fardo è leve e há descanso para a alma (Mt 11:29-30).

Para aqueles que experimentaram esse tipo de vida no passado, o chamado é para uma volta ao primeiro amor e às primeiras obras e, então, para aprender como desenvolver essa atitude inicial na vida de hoje. Para aqueles que nunca tiveram essas experiências, o chamado é para um enfoque sobre o amor de Deus por nós até que nosso coração, nossa alma, nossa mente e nossas forças transbordem de amor recíproco. "Nós amamos porque ele nos amou primeiro" (1 Jo 4:19).

E para aqueles que estão vivendo no amor de Deus e se preocupam com a geração seguinte ao redor deles e seu envolvimento na visão plena do amor de Deus, o chamado é para fazer dessas questões o tema de discussões sérias e extensas e de orações com aqueles que serão os líderes do futuro. Fale com franqueza e honestidade, com freqüência e amor. No devido tempo, será preciso decidir a quem confiar o futuro da organização. Essas decisões devem ser feitas de forma amorosa, porém firme, e "debaixo da poderosa mão de Deus". Não podem ser evitadas. Cabe a nós fazer os preparativos necessários pela prática e pelo ensino sensato e bíblico, por meio da palavra e do exemplo. Também nisso precisamos confiar na operação de Deus em nosso meio (graça) — Deus, a quem amamos, e de cujo amor falamos constantemente para outros.

Na verdade, tudo se resume a amar a Deus de todo nosso coração, de toda mente, alma e de todas as forças, e de colocar em primeiro lugar em nossos planos as atividades que vão ao encontro da graça ativa de Deus, a fim de que esse amor se torne nossa vida.

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Leia na íntegra o artigo (em inglês) "Living in the Vision of God", de Dallas Willard, publicado também no livro (em português) A Grande Omissão (Ed. Mundo Cristão), p.94-98. Obs: Fiz uma pequena adaptação no parágrafo inicial, dividindo-o em 5 etapas.

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