Envia-me

Luciano Motta

Continuamos a refletir sobre como nosso "Eis-me aqui" deve ser uma resposta prática a Deus. Vimos no texto anterior que nosso discurso precisa estar imbricado de prontidão, obediência e atitude, e que o Senhor não se importa tanto assim com nosso grau de maturidade espiritual, desde que nos coloquemos de fato à disposição Dele.

Na famosa passagem de Isaías, possivelmente a mais utilizada em pregações missionárias sobre ser enviado por Deus, conhecemos a visão e o chamado do profeta:

"No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi também ao Senhor assentado sobre um alto e sublime trono; e o seu séquito enchia o templo. Serafins estavam por cima dele; cada um tinha seis asas; com duas cobriam os seus rostos, e com duas cobriam os seus pés, e com duas voavam. E clamavam uns aos outros, dizendo: Santo, Santo, Santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória. E os umbrais das portas se moveram à voz do que clamava, e a casa se encheu de fumaça. Então disse eu: Ai de mim! Pois estou perdido; porque sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábios; os meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos. Porém um dos serafins voou para mim, trazendo na sua mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; E com a brasa tocou a minha boca, e disse: Eis que isto tocou os teus lábios; e a tua iniquidade foi tirada, e expiado o teu pecado. Depois disto ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Então disse eu: Eis-me aqui, envia-me a mim. Então disse ele: Vai, e dize a este povo..." (Isaías 6:1-9).

É importante destacarmos que nos primeiros cinco capítulos do livro de Isaías há uma série de advertências do profeta aos povos, começando quase sempre com a expressão "Ai". Mas neste sexto capítulo, ao contemplar o próprio Deus assentado sobre um alto e sublime trono, recai a advertência sobre ele mesmo: "Ai de mim". Dessa forma, entendemos que o chamado pelo Senhor para a Sua obra, seja qual for o encargo, sempre nos conduz a uma clara noção de quem realmente somos, ou seja, de nossa posição enquanto servos totalmente dependentes Dele. Ressaltando estas palavras, Isaías diz mais tarde: "todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças como trapo da imundícia; e todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniquidades como um vento nos arrebatam". E reconhece: "tu és nosso Pai; nós o barro e tu o nosso oleiro; e todos nós a obra das tuas mãos" (Isaías 64.6,8).

O Senhor quer nos moldar e nos usar ao Seu modo. Ele vai ao nosso encontro e se revela a nós de muitas maneiras: em uma visão aberta ou num relance, através do som direto da Sua voz ou por meio dos sentidos interiores do coração, dentre outras tantas possibilidades. Seja como for, a percepção de Sua Presença conosco é irresistível. Conceber que o Deus Todo Poderoso nos escolheu para irmos em Seu Nome é realmente arrebatador. E não precisamos estar perfeitos para isso. Na verdade, é no próprio envio que notamos a instrumentalidade de Deus para nos fazer crescer e amadurecer. Podemos já estar em missão, como Isaías já era profeta, e só então termos os nossos olhos abertos quanto à realidade celestial e aos desígnios de Deus. Quando isso acontece, Ele nos realinha ao Seu caminho; renova as nossas forças para irmos em frente, não importam as circunstâncias, tampouco as adversidades.

Ananias passou por experiência semelhante:

"E havia em Damasco um certo discípulo chamado Ananias; e disse-lhe o Senhor em visão: Ananias! E ele respondeu: Eis-me aqui, Senhor. E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e vai à rua chamada Direita, e pergunta em casa de Judas por um homem de Tarso chamado Saulo; pois eis que ele está orando; E numa visão ele viu que entrava um homem chamado Ananias, e punha sobre ele a mão, para que tornasse a ver. E respondeu Ananias: Senhor, a muitos ouvi acerca deste homem, quantos males tem feito aos teus santos em Jerusalém; E aqui tem poder dos principais dos sacerdotes para prender a todos os que invocam o teu nome. Disse-lhe, porém, o Senhor: Vai, porque este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel. E eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome. E Ananias foi..." (Atos 9:10-17).

Os primeiros cristãos sofreram severas perseguições por causa do Evangelho. Naquele contexto tão árduo, Ananias recebeu uma tarefa de Deus: acolher o recém-convertido Saulo, o mais zeloso dos fariseus, o mais duro perseguidor da igreja. O discípulo até tentou expor quão delicada era aquela missão, mas as palavras do Senhor o encorajaram - sua tarefa era nobre demais, e sua vida já não lhe pertencia. Ser enviado por Deus requer de nós muitas vezes esse entendimento: podemos perder a própria vida.

Só que pensar a respeito disso em uma nação sem perseguição religiosa como o Brasil, onde se pode abrir templos à vontade, onde se pode falar de Cristo sem o risco de prisão ou morte, não tem o mesmo impacto - o que talvez explique o porquê de nosso "Eis-me aqui" ser tão frágil e sem continuidade. Além disso, a mensagem pregada em diversas igrejas evangélicas brasileiras tem sempre um caráter triunfalista - o "crente verdadeiro" é tipificado como invencível, próspero, não dado a tropeços ou insucessos. Mas a Bíblia apresenta outro viés: Jeremias encontrou lamento e dor em uma cisterna; Davi cometeu graves erros em sua trajetória; Elias ficou abatido com as ameaças de sua algoz Jezabel... Uma leitura atenta de Hebreus 11 revela o final de carreira nada "evangélico" que muitos tiveram quando disseram "Eis-me aqui" para Deus. O apóstolo Paulo afirmou: "Sei estar abatido, e sei também ter abundância; em toda a maneira, e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome; tanto a ter abundância, como a padecer necessidade. Posso todas as coisas em Cristo que me fortalece" (Filipenses 4.12-13). E disse mais: "Mas em nada tenho a minha vida por preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha carreira, e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus" (Atos 20.24).

Ao expressarmos nosso "Eis-me aqui" estamos considerando apenas o que diz respeito ao Senhor, ao que Ele deseja fazer, mesmo que o final não nos seja favorável nesta terra. Mas se nos recordarmos que "todas as coisas cooperam" para o nosso bem, se considerarmos o prêmio que nos está proposto, se reconhecermos que Ele, só Ele, é Digno de tudo, inclusive de nossas vidas, pois fomos comprados por um alto preço, então as dores e as tribulações do tempo presente não nos servirão de impedimento. Deus nos amou - e nos ama de tal maneira! - e ainda quer nos usar em Seu plano de redimir o mundo e estabelecer o Seu Reino. Cristo só voltará para uma Noiva pronta para Ele, sem mancha, sem ruga e sem mácula. Nosso "Eis-me aqui" deve alinhar-se ao Seu Zelo, ao Seu Amor por nós.

Lembremos que Deus sempre se colocou à disposição de Israel, ainda que Seu povo não o buscasse. Veja o que Ele revelou ao profeta:

"Mantive-me à disposição das pessoas que não me consultavam, ofereci-me àqueles que não me procuravam. Eis-me aqui, eis-me aqui, dizia eu a um povo que não invocava meu nome. Estendia constantemente as mãos a uma nação indócil e rebelde, que seguia o mau caminho de acordo com suas inclinações" (Isaías 65.1-2).

Foi justamente por causa dessa recusa que a salvação chegou aos gentios, ou seja, a todos nós. Mas espere: se o povo escolhido pôde dar as costas para o Senhor, imagine nós, que fomos enxertados na Videira, o que podemos fazer? Na verdade, por mais que muitos tenham seus olhos abertos para verem a glória de Deus, não significa que dirão "Ai de mim". A obstinação e a autossuficiência ainda são sólidas resistências no coração de muitas pessoas, inclusive de escolhidos, crentes. Se não houver quebrantamento e arrependimento, o Senhor em pessoa pode aparecer e dizer "Eis-me aqui" e ninguém o escutar. De fato, Ele está à procura de alguém que queira realizar a Sua vontade. Será que estamos individualmente e coletivamente inclinados para Ele ou para nossos próprios maus caminhos?

Todos recebemos uma comissão, um chamado. É certo que temos ênfases específicas, e cada igreja na cidade tem as suas particularidades. Mas só alcançaremos a completude quando estivermos juntos, unidos por uma só Causa: "Que venha o Teu Reino". Alguns de nós podem ser maduros como Abraão e Jacó; outros, surpreendidos como Moisés e o menino Samuel. Talvez boa parte da igreja necessite de um realinhamento a partir da visão da glória de Deus, como se deu com Isaías, para reconhecermos finalmente nossas misérias e nossa total dependência Dele. De qualquer forma, sejamos nós mesmos a resposta às demandas desse mundo, cansado de apenas palavras e discursos bonitos.

A fé cristã está baseada em expressão ("Eis-me aqui") e em realização ("Envia-me"). Vamos então ser consistentes e perseverantes em nossas promessas para Deus? Pois Ele não se esquece do que tanto falamos e cantamos, dia após dia. Ele nos diz "Eis-me aqui" para nos fortalecer e nos encher do Seu Zelo, do Seu Amor, ao ponto de abrirmos mão de nossas próprias vidas para que a humanidade encontre o final tão esperado.

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