O mal da autossuficiência

Luciano Motta

Esta é uma mensagem à igreja evangélica brasileira.

Nossos dias não nos permitem perder tempo com divisões e partidarismos. A maneira como temos caminhado nesta terra, separados por visões excludentes, não tem inserido perdidos no Corpo de Cristo, mas em instituições religiosas fragmentadas por um sem-número de denominações, as quais muitas se tornaram impérios particulares ou clubes fechados de entretenimento pseudo-cristão disfarçados de igrejas. Levantamos nossas próprias bandeiras, defendemos nossos territórios e feudos. Ignoramos assim o fato de que somos (ou deveríamos ser) unidos em Cristo, lutando por uma só causa, o movimento de um só Corpo:
"Assim, há muitos membros, mas um só corpo. O olho não pode dizer à mão: 'Não preciso de você!' Nem a cabeça pode dizer aos pés: 'Não preciso de vocês!' Pelo contrário, os membros do corpo que parecem mais fracos são indispensáveis, e os membros que pensamos serem menos honrosos, tratamos com especial honra. E os membros que em nós são indecorosos são tratados com decoro especial, enquanto os que em nós são decorosos não precisam ser tratados de maneira especial. Mas Deus estruturou o corpo dando maior honra aos membros que dela tinham falta, a fim de que não haja divisão no corpo, mas, sim, que todos os membros tenham igual cuidado uns pelos outros. Quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele. Ora, vocês são o corpo de Cristo, e cada um de vocês, individualmente, é membro desse corpo" (1 Coríntios 12:20-27).
A sentença "Não preciso de você!" está estampada em inúmeros adesivos de carros e em placas de templos, nas frases de efeito utilizadas como slogans - nelas são exaltadas nossas divisões. Por exemplo: "A igreja que ama você" (Ora, então as outras igrejas não amam?!). Também é evidenciado esse "Não preciso de você!" quando não conseguimos nos reunir em torno da causa de Cristo, seja para orarmos por cidades e governos, seja para dividirmos cargas e nos suportarmos mutuamente. Cada igreja tem de cumprir sua própria agenda (cheia, às vezes extenuante!), cada uma tem suas próprias metas e planos estratégicos de crescer (numericamente falando, em sua maioria).

Com isso, nas entrelinhas, estamos dizendo: "Por que deveríamos nos unir aos irmãos da igreja da esquina, aquela portinha aberta que mal enche seu salão nos cultos de domingo, enquanto aqui na nossa igreja já estamos com dois cultos a pleno vapor?" ou: "Por que deveríamos assumir que nossa equipe de música é péssima e que precisa de aulas e treinamento com irmãos mais capacitados daquela congregação tradicional-histórica?" ou ainda: "Por que deveríamos reconhecer que estamos perdidos em nossa missão enquanto igreja nesta terra e que precisamos imediatamente buscar ajuda de outros irmãos?" e mais: "Temos deficiências nas áreas de profecia e dons, mas não vamos pedir a ajuda de irmãos pentecostais que estão fluindo nisso" ou pior: "Não vamos nos humilhar nem nos submeter a outros, jamais! Não precisamos de ninguém! Somos independentes!"

Esses postulados são velados entre nós (e podem até soar ofensivos). Porém, como poderemos negá-los em nosso meio evangélico? Até quando vamos fingir que estas coisas não existem?

Outro ponto à deriva em um mar de soberba e dureza de coração: "Os membros que parecem mais fracos são indispensáveis". É quase utópico encontrarmos um pastor que se submeta à exortação de uma iletrada ovelha, ou um líder que assuma suas mazelas, incapacidades e temores diante da sua equipe. Vivemos dias de super-homens-pastores-bispos-missionários-apóstolos-etc-etc. Não existe sujeição mútua, tampouco a nobre ação de considerarmos os outros superiores a nós mesmos. Falta ambiente seguro para demonstrarmos quem realmente somos por dentro. Por isso não há mais confissão de pecados entre nós, pois para um crente evangélico tudo precisa estar bem, senão "tá fora da bênção" ou será destituído de seu cargo/ministério (além de ser péssimo para sua reputação).

Alia-se a isso um problema que não é novo, mas muito evidente em nossos dias: só tem voz ativa aqueles que possuem o capital, ou seja, que dão o maior dízimo. Parece que só quem prosperou tem direito de ir à frente para dar testemunho de suas posses recém-adquiridas. Mas quando foi mesmo a última vez que ouvimos testemunhos de quem está sofrendo pelo Evangelho, gastando sua própria vida por amor a Jesus?

Seria poderoso e revolucionário se vivêssemos também essas duas instruções: "que todos os membros tenham igual cuidado uns pelos outros" e também: "Quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele". Para infelicidade nossa, contudo, não tratamos daquele que sofre. Um tapinha nas costas e um "Deus te abençoe" não saciam a fome dos que não tem pão, nem resolve o drama dos endividados, dos que sofrem no casamento, na família... Estes problemas têm sido creditados ao "devorador" ou a "crentes fracos", porque o verdadeiro crente "é próspero, é feliz, é abençoado". Quando existe algum movimento social, na maior parte das vezes a iniciativa vem de um grupo para-eclesiástico (que nunca poderá substituir a ação da igreja). Às vezes alguns irmãos bem intencionados se unem para ajudar os necessitados do bairro onde estão inseridos, mas deixam de prestar assistência a membros da própria congregação. A justiça social deveria começar com os da casa.

Quanto a se alegrar com os outros, e principalmente por causa dessa distorcida teologia da prosperidade, muitos corações têm cultivado sentimentos de competição e inveja ao verem irmãos sendo bem sucedidos e crescendo, seja qual for a área. A motivação desses está em ganhar mais e mais, tal qual o mundo. Há pessoas que carregam grande peso de frustração porque participaram da mesma "campanha de portas abertas", deram o dízimo, o "trízimo", ofertaram diariamente nos "21 dias de vitória", e não conseguiram nem um centavo de bênçãos (e seus filhos, ainda por cima, ficaram doentes). Possivelmente irão pensar: "Como me alegrarei com os irmãos se EU não ganhei nada?"

Eis o mal: nossa autossuficiência. Uma doença disseminada a partir das plataformas, da mídia, dos pregadores e cantores gospel. Uma chaga escondida sob as vestes daqueles que se dizem líderes e sacerdotes do povo de Deus. Assemelham-se a Naamã, homem valoroso, porém leproso, indignado por ter de mergulhar nas águas imundas do Jordão; logo ele, um respeitado capitão do exército do rei da Síria (2 Reis 5.1-14). Para Naamã, bastava o profeta declarar uma palavra para ser curado - ele queria do seu próprio jeito, de modo que não se humilhasse diante dos outros! Da mesma forma, nos parecemos com o rei Saul, na atitude de não esperar Samuel - ao oferecer ele mesmo o holocausto, foi rejeitado por Deus devido ao seu coração obstinado (1 Samuel 13.1-14). Os maus exemplos vêm de cima, nutridos por um sistema religioso evangélico que reforça esse coração presunçoso e essa motivação escusa de zelar sempre por uma boa reputação e daí nunca expor quem realmente somos.

Há um fator que agrava essa nossa autossuficiência: a falta de amor. A realidade corporativa da igreja está tão distante da prática diária que ficamos insensíveis às dores dos irmãos. O que aconteceu em Atos nos parece uma antiga e descabida lenda religiosa. O amor que se esfria nos últimos tempos é consequência dessa vida desconectada-um-do-outro, e principalmente de Deus. Temos congregações cheias de atividades e eventos, porém esvaziadas da vida de Deus, porque seus membros não têm profunda comunhão com Ele. Encontramos pessoas cada vez mais solitárias, perdidas na multidão, dependendo de líderes amparados pelo status, pela posição, mas tão vazios e frios quanto elas mesmas. Desta forma, a maior parte dos crentes não desenvolve a salvação, nem cresce em maturidade espiritual, apenas cumpre uma agenda litúrgica e operacional para manter uma estrutura, um sistema denominacional que fortalece hierarquias e segrega, colocando um contra o outro.

"Deus estruturou o corpo dando maior honra aos membros que dela tinham falta". Quando a honra e a exaltação são concedidas pelo Cabeça, há saúde e equilíbrio no Corpo. Disputas por posição ou cargos perdem força porque os crentes estão empenhados em servirem uns aos outros, obedecendo à direção e ao modelo de Cristo, para "que todos os membros tenham igual cuidado uns pelos outros". Isso denota um coração bem aberto para dar e receber o amor de Deus, em todas as suas formas e possibilidades, inclusive na exortação e na sujeição entre os irmãos. Isso também agride frontalmente o sistema religioso evangélico vigente, que tem desestruturado o Corpo para sustentar lideranças que pensam primeiro em si mesmas.

Precisamos de vínculos viscerais de comunhão e fé para nos ligarmos uns aos outros, inclusive com outras congregações. Só então os muitos "Ministérios" poderão se tornar de fato cooperadores da obra de Deus, contribuindo efetivamente para o estabelecimento do Reino e de seus valores, nas congregações locais e fora delas, tocando outras congregações e também a comunidade.

Precisamos rever nossos discursos. Dizemos que a graça de Deus é multiforme (e quanto mais igrejas melhor!). Defendemos que o evangelho tem crescido no Brasil (e quanto mais crentes melhor!). Mas e a qualidade, a profundidade, a relevância? Onde estão as transformações na sociedade? Como estamos em relação à oração de Jesus (leia João 17) para que fôssemos um? O mundo tem visto a glória do Pai por causa da nossa unidade e (co)missão, ou tem sido justamente o contrário?

Precisamos frear o tanto de agitação e movimento semanais com os quais nos dedicamos "em nome de Jesus" e nos colocarmos no lugar do silêncio, das orações e intercessões individuais e coletivas, para produzirmos fome e sede pela genuína presença de Deus, por Sua vontade. Que nossas ações e energias sejam canalizadas para conhecermos de fato o que está no coração do Pai para esses dias, e que nossas atividades e movimentos resultem disso!

Não é possível sermos divididos na terra e unidos no céu.

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*Sobre esse tema, leia também: Babel, linguagem e unidade.

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